sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A Vilã de Aço

Thiago Rique

Faora, ou Faora Hu-UI, é uma criminosa kryptoniana sentenciada a cumprir pena equivalente a 300 anos kryptonianos na Zona Fantasma, uma dimensão paralela conectada à nossa descoberta por Jor-El onde detentos eram transformados em seres incorpóreos, podendo ver tudo a sua volta, mas sem serem vistos ou ouvidos, tal como verdadeiros espectros.

A estréia da vilã foi em 1977, em Action Comics #471, de início mostrasda ainda presa na Zona Fantasma, mas cometendo crimes por Metrópolis. Logo no número #472, ela se liberta de lá e aí pode-se vê-la em sua forma corpórea.

Por anos, Faora foi conhecida pelos leitores como "a mulher da Zona Fantasma", sendo o único membro do sexo feminino a compor o quadro de detentos lá exilados, dos quais faziam parte o general Dru-Zod, o cientista Jax-Ur, Kru-El (nome idiota e, sim, primo em segundo grau do Superman) entre outros. Ela se destacava por duas particularidades:

1) Seu ódio imenso pelos homens, razão que a levou a montar um campo de concentração particular onde exterminou 23 indivíduos do sexo masculino, podendo ser taxada como uma serial killer.

2) Seu treinamento e expertise na arte marcial kryptoniana conhecida como
Horo-Kanu, isto numa época onde mostrar um homem lutando com uma mulher de igual para igual nos quadrinhos era algo impensável e ela, desta forma, apresentava-se como um desafio para o Superman, pois ele não podia trocar socos com a vilã por motivos de cavalheirismo, mesmo ela sendo uma lutadora superior.

A sentença de Faora, aliás, só era superada pela de Jax-Ur, o responsável por destruir Wegthor, uma das luas de Krypton, tornando-a praticamente a segunda mais perigosa detenta da Zona Fantasma.

Desde sua estréia, Faora teve várias encarnações. A razão disso foi o reboot dado pela DC em todo seu universo no ano de 1986, quando também foi "zerada" toda a cronologia do Superman no projeto encabeçado pelo roteirista e desenhista John Byrne. Entre as novas diretrizes editoriais referentes ao personagem, estipulava-se dois pontos relevantes: 1) Clark Kent, agora tornado a persona predominante, iniciou sua carreira heroica na idade adulta e 2) só havia um sobrevivente de Krypton, Kal-El/Superman, e nenhum outro. Isso eliminava totalmente personagens como a Supergirl (Kara Zor-El), Krypto, os habitantes da cidade engarrafada de Kandor e também os criminosos da Zona Fantasma, incluindo a versão prévia de Faora Hu-Ul, a assassina de homens.

Um dos primeiros problemas da nova continuidade veio com a Legião dos Super-Heróis, um grupo criado nos anos 1960 cujas as histórias se passavam no século 30. A questão era que a equipe tinha sido formada de início por três jovens - Rapaz Relâmpago, Satúrnia e Cósmico - inspirados no Superboy e, na nova versão do Homem de Aço escrita por John Byrne, o herói jamais vestira o uniforme e o emblema durante a infância ou adolescência. O problema veio quando as primeiras aventuras da Legião pós-reboot continuaram fazendo referências ao Superboy e a DC precisou explicar o fato aos leitores. John Byrne, sempre criativo, veio com a solução milagrosa: de fato, o Superman jamais havia sido um super-garoto de carreira pública, mas houve um erro nos arquivos preservados no século 30 de suas primeiras aventuras e foram, de alguma forma, registradas atividades dele como um "superboy".

Um inimigo da Legião com poderes quase divinos, o Mestre do Tempo, valendo-se dessa informação e sabendo da confusão dos jovens heróis, criou um "universo compacto" onde manipulou a existência e fatos de incontáveis pessoas para criar um Superboy igual ao conhecido pela Legião nos registros arquivados do século XX e, sempre que a equipe viajava ao passado para encontrar com ele, o vilão manipulava a travessia, fazendo-a ir parar em sua dimensão paralela sem saber. Seu objetivo era eventualmente voltar o garoto contra o grupo, desestabilizando-o emocionalmente. Na trama final, para "limpar" a casa do problema criado, Byrne mata o Superboy numa aventura em conjunto com o Superman e a Legião.

Como última curiosidade deste arco, fica o detalhe dos kryptonianos daquela dimensão serem muito mais poderosos que o Superman. Uma das decisões mais polêmicas de John Byrne e da DC na época do reboot foi reduzir os níveis de poder de Kal-El. Quando este arco de histórias foi lançado, Byrne decidiu explorar um interessante conceito e estabeleceu que o Superboy - assim como todo e qualquer kryptoniano daquele universo paralelo - possuía os mesmos níveis de poderes de sua versão pré-reboot, tal como ser capaz de quebrar a barreira do tempo sozinho, por exemplo. A kryptonita deste Universo Compacto também era inofensiva, por alguma razão desconhecida, ao Homem de Aço.

Algum tempo depois, o Superman volta a esta dimensão paralela convocado pela Supergirl de lá, na verdade um clone super-poderoso de Lana Lang daquele universo, e faz uma terrível descoberta: três criminosos kryptonianos haviam sido libertados, dizimando praticamente toda população terrestre e o próprio planeta onde, graças às manipulações do Mestre do Tempo, nunca havia surgido outro herói além do finado Superboy, não havendo portanto quem pudesse se opor a eles. Os vilões eram o general Zod, Quex-Ul e... Zaora! Apesar do nome diferente, a personagem tinha um uniforme praticamente idêntico à Faora da continuidade anterior, além de sua lealdade à Zod. Todos três fugitivos, assim como o Superboy, tinham um nível de poder bem superior ao do herói viajante dimensional, mostrando-se uma ameaça muito mais letal. A história foi dividida em três edições e, talvez por isso, Byrne se isentou de dar explicações sobre o passado tanto dela, quanto dos demais, ficando totalmente em aberto se havia alguma nova informação ou não sobre o trio.

A edição Superman #22 (no Brasil, Superpowers #22, Editora Abril, 1990) foi a última escrita por John Byrne e apresentou o combate épico pela liberdade das forças da daquela Terra, lideradas por Superman e Luthor, com os pilotos Oliver Queen, Bruce Wayne e Hal Jordan, nomes bem familiares para muitos leitores. No fim, em um dos momentos mais polêmicos das HQs dos anos 1980, Superman mata os criminosos - já sem poderes - usando kryptonita verde, após eles terem exterminado todos os demais sobreviventes, restando apenas os quatro num planeta calcinado, sem sequer vida vegetal ou oceanos e rios. Assim, encerrava-se a introdução e breve participação de Faora, ou Zaora, após o reboot de 1986.

A história acima foi apagada definitivamente da cronologia do Superman após Crise Infinita em 2006 para alegria de muitos fãs do herói por considerarem "matar" uma linha que o Superman jamais deve cruzar.

Faora reapareceu brevemente como um programa de computador, uma inteligência artificial que tenta infectar o personagem Erradicador, uma máquina kryptoniana que ganhou consciência e depois se tornou um anti-herói após o evento da morte do Superman. Esta versão durou apenas a história onde a trama se passou.

Em 2001, Superman e Lois Lane vão parar no planeta natal dele através da Zona Fantasma no arco Return to Krypton e lá conhecem a dupla formada por Faora e seu marido, Kru-El, o primo do herói fazendo sua primeira aparição no universo DC após o reboot de 1986, conhecidos aqui como "Os Caçadores de Zod". Depois foi estabelecido que este planeta era uma criação do vilão Brainiac 13, sendo na verdade uma armadilha para Kal-El e Lois. Esta Faora acabou sendo morta por fanáticos religiosos.


Algum tempo depois, a DC resolveu reintroduzir Faora ao lado de um General Zod, agora sem qualquer ligação com Krypton ou a Zona Fantasma, ainda mantendo o status quo de último kryptoniano do Homem de Aço. Ela foi apresentada como uma metahumana (termo usado dentro do universo da editora para designar humano com super-poderes) que servia a este "Zod", na verdade o filho de cosmonautas russos e cujo poder vinha da radiação de sol vermelho em oposição aos do Superman, oriundos de uma estrela amarela. Esta versão teve também uma vida breve e a vilã e seu passado nunca foram bastante explorados, ficando o maior enfoque no "general" e ela acabou esquecida pelos demais autores quando esse arco de histórias se fechou. Esta foi a última aparição de uma "Faora" nos quadrinhos. (Curiosidade: Joe Kelly, o autor do arco, confirmou que a ideia inicial era fazer este "Zod" o Kal-El daquele falso Krypton criado por Brainiac 13 e que ele teria sido corrompido pelo espírito do Zod original, morto por Superman anos atrás no "universo compacto", mas em algum ponto ele e a DC mudaram a direção da história. Fica claro ao lê-la, porém, que o vilão definitivamente sofria influência daquele "outro" Zod).

"Mas, um momento, e Ursa, a vilã de Superman II?", você pode perguntar. "Como Faora pode ser a única detenta da Zona Fantasma? Ursa não existe?"
Para explicar essa confusão, vamos primeiro entender que, quando Superman I e II foram filmados, não havia muito cuidado ou esmero em se manter fidelidade ao material original e, portanto, muitas liberdades eram tomadas nas adaptaçãos de quadrinhos para o cinema, rádio ou TV, algo presente até hoje nestas produções. Uma delas era a mudança de nomes de personagens ou fatos de suas vidas por completo. Assim, em Batman (1989) é o Coringa quem mata os pais de Bruce Wayne. Aqui, Faora foi a inspiração para Ursa, esta herdando dela inclusive o ódio por homens. Na fala de Jor-El (Marlon Brando), até fica implícito que este sentimento ameaçou "as crianças do planeta Krypton", ou seja, ela deve ter matado alguns garotos pelo caminho antes de se aliar ao general Zod no fracassado golpe mostrado de forma breve no começo de Superman II. Da mesma forma, Jax-Ur e Kru-El, dois zoners famosos, foram substituídos por Non, um gigante com deficiência mental, sem qualquer similaridade aos dois, sendo uma criação totalmente nova do escritor Mario Puzo e dos roteiristas David e Leslie Newman.

Assim, Ursa, vivida pela atriz Sarah Douglas, jamais foi uma personagem de quadrinhos, sendo exclusiva do filme. Da mesma forma como os roteiristas do longa-metragem ignoraram Faora, os dos quadrinhos também ignoraram sua contraparte cinematográfica, entendendo pertencer cada uma a sua mídia respectiva.


Mas isso começou a mudar ainda em 2001. Antes de se introduzir a "Faora metahumana" citada acima, a DC resolveu rescrever novamente a origem do Superman com a mini-série Legado das Estrelas escrita por Mark Waid e desenhada por Francis Yu, abrindo as portas para a existência de outros kryptonianos ao romper com a lei do "só pode haver um" e trazendo de volta, nos anos seguintes, a Supergirl original (Kara Zor-El) e a cidade de Kandor, embora o silêncio sobre uma Faora mais fiel à versão pré-1986 continuasse.

Em 2006, DC convidou Richard Donner, o diretor de SUPERMAN I e de praticamente 70% do segundo para escrever um arco de histórias oficial para as HQs e ele foi responsável por introduzir Ursa e Non nos quadrinhos como personagens oficiais do cânone ao lado do General Zod, todos os 3 apresentados como kryptonianos puro-sangues e fugitivos da Zona Fantasma. Donner incorporou novos detalhes ao passado da vilã, alterou outros estabelecidos no filme e desenvolveu mais personalidade dela, enfim distanciando ainda mais Ursa de Faora.


Ficou estabelecido que Ursa era subordinada militar e amante do General Zod, sendo uma soldado altamente treinada do exército kryptoniano. Ela e Zod também tinham um filho, Lor-Zod, nascido na Zona Fantasma e depois adotado por Clark e Lois por um breve período, onde ganhou o nome terráqueo de Christopher Kent numa clara homenagem clara do diretor a Christopher Reeve, ator que viveu o Superman em seus filmes.

A única vez onde Faora e Ursa foram apresentadas como seres totalmente distintos e separados, inclusive coexistindo juntas, foi no episódio The Hunter da série animada do Superman produzida em 1988 pelo estúdio Ruby-Spears, quando ambas aparecem trabalhando ao lado de Zod.


Mas, se desde 1988 (1990 no Brasil) não se ouvia falar de uma Faora kryptoniana nos quadrinhos, o cinema guardava uma surpresa. MAN OF STEEL, o novo filme do Superman, tem o privilégio de resgatar e apresentar à grande audiência a personagem original, Faora, vivida pela atriz alemã Antje Traue. Mas a confusão entre ela e Ursa só piorou: tirando uma rápida passagem onde ela luta com Kal-El usando claros movimentos de artes marciais, não existe praticamente nada na personagem que remeta a sua versão quadrinística original. Faora é agora apresentada como uma soldado, membro do exército kryptoniano e subordinada a Zod, sendo sua segunda-em-comando. Soa familiar? Pois é, o ciclo se completou e agora é ela que absorveu em sua versão cinematográfica traços da Ursa dos quadrinhos, tornando ainda mais indistinta a linha entre as duas vilãs.


Outra pequena curiosidade no filme é o nome da vilã. Ela chama a si de Faora-Ul em certo momento, mas este não era o modo adotado para nomear mulheres kryptonianas em nenhuma das versões do planeta nesses 75 anos. O padrão "básico" sempre foi um primeiro nome seguido pelo nome completo do pai, que comportava o nome da família. Por exemplo, a mãe de Kal-El se chamava Lara Lor-Van, enquanto a Supergirl original, prima do herói, é Kara Zor-El. Originalmente, as mulheres herdavam o nome do marido quando casavam (Lara passou a se chamar Lara Jor-El), mas após o reboot de 1986 isso sofreu algumas mudanças e a partir de 2011 ficou estabelecido que elas mantinham o nome do pai mesmo após casar. Assim, uma mulher de Krypton nunca acoplou o nome da família ("El", "Van", "Ul", "Zod") direto ao seu como em "Faora-Ul" e não se sabe porque isso foi apresentado assim no filme de 2013, pois a própria Lara, a outra kryptoniana a aparecer na película, é nomeada de forma correta em diversos materiais promocionais.

Em 2011, a DC novamente "zerou" seu universo após o evento "Ponto de Ignição" ("Flashpoint") como parte do projeto NOVOS 52 que visava reiniciar a história de seus personagens. Na nova origem e histórias do Superman, já foi apresentada a existência de Ursa e Zod, Jax-Ur e Non também já foram citados ou aparecerem fisicamente em algum ponto nestes 24 meses desde o relançamento das revistas, mas sobre Faora nada ainda foi dito, permanecendo o silêncio. Porém, com o sucesso de Man of Steel e a popularidade crescente experimenta a seguir pela personagem junto ao grande público, com certeza voltaremos a ouvir falar da assassina de homens logo: existe uma personagem na capa de "Superman/Wonder Woman #1", a nova revista mensal dedicada ao casal 20 da DC, bem parecida com ela e com um visual idêntico ao do filme. Resta saber quais novidades esta nova versão trará.